
“Assim que se avermelhe o céu e a noite depressa chegue, com um cobertor de nuvens apagando o fogo de estrelas / Não importa o meu escuro está aceso”. Os versos de Deborah Brennand (1927–2015) são alguns dos muitos que traduzem as relações entre claridade e sombra, marcas de sua poética. É a partir desse universo que a Oficina Francisco Brennand apresenta a exposição inédita “Noites de Sol”, um encontro entre a poesia de Deborah e a pintura contemporânea da artista amorí a partir do poema homônimo da autora, publicado pela primeira vez no livro “Noites de Sol ou As Viagens do Sonho” (1966), no qual imagens intensas de luz e temas como tempo e sonho se fazem presentes. A mostra também inclui o desenho “O sonho” (1950), de Francisco Brennand, que se conecta ao poema que inspira o projeto. A exposição tem curadoria de Rita Vênus, também responsável por “Núcleo Saturno”, e fica aberta ao público durante seis meses na entressala do Cineteatro do museu-ateliê, localizado na cidade do Recife.
Inspirada pelo livro publicado em 1966, amorí desenvolveu a obra inédita “tudo aceso no profundo azul da noite”, conectada aos principais aspectos da poesia de Deborah. Apesar de pertencentes a gerações e linguagens distintas, as artistas possuem pontos em comum na criação de suas obras, a exemplo das paisagens atravessadas pela luz e dos seres disfarçados de estrelas. Ambas partem, ainda, de um imaginário rural predominante nas localidades onde nasceram: são de origem pernambucana, especificamente das Zonas da Mata Norte e Sul. A mostra surge, portanto, sob ideia e propósito de reapresentar a obra de Deborah Brennand, no ano em que se completa a primeira década de seu falecimento, ampliando as possibilidades de alcance de sua criação no contemporâneo por meio do diálogo com a linguagem visual.
O espaço intimista, projetado pelo arquiteto Alberto Rheingantz, responsável pelo último Panorama da Arte Brasileira no MAM, foi pensado para fazer convite à contemplação, propondo que os visitantes apreciem com calma as obras, dispondo de um mobiliário que cria uma ambientação acolhedora, despertando o desejo de permanência por mais tempo na exposição.
Para a curadora, a obra de amorí cria conexões diretas e tangenciais com o texto poético de Deborah. Assim, dentro do imaginário da autora, é possível perceber diversos aspectos refletidos na obra visual. “As paisagens de nuvens são imagens presentes na obra das duas artistas, muitas vezes ligadas à passagem do tempo. Eu falo que com Deborah viajamos a um primeiro jardim, pois ela faz muitas referências ao Éden e à presença das folhas e frutos vermelhos, por exemplo. E com amorí, é como se fôssemos levadas a um último jardim, de uma terra mais arrasada, porém cheia de matéria luminosa e brincante. Em troca com Aura do Nascimento, ela me falou algo bonito sobre a obra de amorí: é como se a artista criasse um site-specific dentro da mente dela e revelasse isso na pintura”, observa Rita Vênus.

Ela acrescenta que, na Oficina Francisco Brennand, a literatura, especialmente a poesia, encontra um terreno fértil para se desenvolver e se espalhar pelos espaços da cidadela, pelos seus muros e pelo conjunto escultural. “A presença de trechos literários em todo o museu-ateliê depõe a íntima relação do artista com a palavra. ‘Noites de Sol’ é um projeto voltado a estabelecer conexões entre a Oficina e a arte contemporânea, enaltecendo o talento das artistas e reafirmando a importância da Oficina como um dos grandes polos culturais do Brasil” finaliza.
Faixa sonora
Além da pintura de amorí e do desenho de Deborah feito por Francisco Brennand, a exposição inclui uma faixa sonora com onze poemas selecionados de “Noites de Sol ou As Viagens do Sonho”, recitados por Rita Vênus e pela artista Aura do Nascimento; um exemplar da edição original e rara do livro de 1966 e grande parte da obra de Deborah reunida para leitura, estimulando o público a dar voz à palavra e a toda poesia que surge desse encontro.
“Temos a missão de preservar e difundir o legado de Francisco Brennand, entendendo a Oficina como um espaço de tradições que se mantém sólidas a partir da conexão com a contemporaneidade. Um lugar de diálogos que recebe novas linguagens e possibilidades artísticas. Estrear uma exposição inédita que nasce a partir dessa interseção fortalece nosso propósito de manter a Oficina em sintonia com o presente”, anota Marcos Baptista, presidente da Oficina Francisco Brennand.
Sobre Deborah Brennand
Deborah Brennand nasceu no município de Nazaré da Mata, em 12 de fevereiro de 1927. Estudou na Faculdade de Direito do Recife, mas foi na poesia que exerceu sua vocação. Já adulta, morou no Engenho São Francisco, onde se dedicou à criação de gado e jumentos, tendo profunda conexão com a natureza e com os animais, temas presentes em algumas de suas obras. Foi companheira de Francisco Brennand, com quem produziu diversas trocas intelectuais e artísticas, tendo seu trabalho recebido incentivo de nomes como César Leal e Ariano Suassuna, participando ainda do Movimento Armorial, liderado por este.
Como homenagem, a poeta foi eternizada por Francisco Brennand, que renomeou o cineteatro do museu-ateliê — então Auditório Heitor Villa-Lobos — com o nome da escritora. Está presente, ainda, na primeira escultura em cerâmica assinada por Francisco, intitulada “Cabeça de Deborah” (1946). Aos 80 anos, passou a ocupar a cadeira de número 37 da Academia Pernambucana de Letras (APL).

Dentre suas obras publicadas estão “O Punhal Tingido ou O Livro das Horas de D. Rosa de Aragão (1965)”, “Noites de Sol ou As Viagens do Sonho” (1966), “Claridade” (1996), “O Cadeado Negro” (1971), “Pomar de Sombras” (1995), “Maçãs Negras” (2001), “Letras Verdes” (2002) e “Tantas e Tantas Cartas” (2003). Grande parte de sua obra foi reunida em 2007 na antologia “Deborah Brennand — Poesia Reunida”, publicada pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe). Faleceu no dia 26 de abril de 2015, aos 88 anos de idade.
Sobre amorí
Nascida em 1995, na Zona da Mata Sul de Pernambuco, amorí desenvolve pesquisas baseadas na repetição incessante de formas que atravessam paisagens de sua memória e universos ficcionais oníricos. Suas obras são criadas com látex, ferro, cerâmica e diversos materiais residuais. Participou de várias exposições em galerias e eventos em Pernambuco, São Paulo e no Rio de Janeiro, além de ter realizado quatro residências artísticas nesses estados. Foi ainda selecionada para o ciclo de residências de 2025 do Programa de Residência Artística da Galeria Luis Maluf, em São Paulo. Dentre algumas de suas obras estão as pinturas “anúncio do entardecer” (2025) e “Esconderijo da Noite” (2025).
Sobre a Oficina Francisco Brennand
Transformada em instituto cultural sem fins lucrativos em 2019, a Oficina Francisco Brennand preserva o legado do artista que lhe dá nome e promove práticas artísticas, educativas e culturais contemporâneas. Localizada na Mata da Várzea, no Recife, abriga um vasto conjunto de obras, espaços expositivos internos e externos, conjuntos escultóricos monumentais, jardins projetados por Roberto Burle Marx e uma reserva técnica. Fundada em 1971, inclui ateliês, edificações fabris, uma capela projetada por Paulo Mendes da Rocha e Eduardo Colonelli, além de um café-restaurante e uma unidade de apoio no Bairro do Recife, a Casa Zero.




