
Num país que se orgulha de defender a ecologia e a preservação ambiental, ainda é profundamente contraditório manter animais selvagens em cativeiro para o deleite público. A cada nova tragédia envolvendo grandes felinos confinados, somos obrigados a encarar essa incoerência que insiste em se perpetuar. O caso recente de João Pessoa reacende essa discussão com força dolorosa. Gerson de Melo Machado, de 19 anos, jovem conhecido como Vaqueirinho e portador de transtornos mentais, morreu após invadir a área restrita de uma leoa no zoológico da capital paraibana.
Embora o parque cumprisse as normas técnicas do Ibama e possuísse barreiras acima do exigido, nada disso foi suficiente para impedir o desfecho fatal. As câmeras mostram que ele escalou uma parede de mais de seis metros, ultrapassou grades de segurança, subiu em uma árvore e entrou no recinto. A prefeitura afirmou que equipes tentaram contê-lo, mas a ação foi rápida e determinada. Porém, mais do que atribuir responsabilidades pontuais, é preciso olhar para o problema em sua raiz: quando a vida selvagem é confinada, a imprevisibilidade se torna permanente e a tensão entre instinto, estresse e ambiente artificial pode explodir em qualquer momento. Quando essa realidade se encontra com a fragilidade humana — especialmente de alguém com histórico de transtornos mentais, abandono e vulnerabilidade social — o resultado pode ser trágico.
Essa não é uma história isolada. Há 25 anos, em 9 de abril de 2000, o Brasil viveu outro episódio que jamais deveria ter acontecido. No intervalo das apresentações do Circo Vostok, montado no estacionamento do Shopping Guararapes, em Jaboatão dos Guararapes, o garoto José Miguel dos Santos Fonseca Júnior, de apenas seis anos, acompanhando o pai e a irmã de três anos, foi mortalmente atacado ao se aproximar de animais expostos para fotos. O que deveria ser um domingo feliz em família terminou em horror, dor e memória eterna de que a natureza selvagem não pode ser domesticada para fins de espetáculo. Nos dois casos, há um fio comum: ambientes artificiais, animais privados de seus habitats, falhas humanas inevitáveis e a falsa sensação de que jaulas, cercas e protocolos podem garantir segurança total.
Mas o ponto mais grave permanece: insistimos em transformar animais selvagens em atrações e pessoas vulneráveis em espectadores indefesos. E isso contraria frontalmente o discurso ecológico que o Brasil gosta de professar. É incoerente defender a sustentabilidade ao mesmo tempo em que aprisionamos seres que deveriam viver sob o céu aberto de suas próprias florestas. É contraditório ensinar às crianças o respeito ao meio ambiente através da contemplação de animais deprimidos, repetindo movimentos estereotipados dentro de jaulas. A educação ambiental não deveria se apoiar no sofrimento; a conservação não deveria significar aprisionamento. Muitos países já abandonaram o modelo tradicional de zoológicos e espetáculos com animais, substituindo-os por santuários, áreas de preservação abertas, realidade virtual educativa, observação responsável em habitats naturais e centros de reabilitação. Ou seja, há alternativas reais, modernas, éticas e seguras — mas seguimos repetindo tragédias que denunciam um modelo ultrapassado.
As mortes de Gerson e de José Miguel não podem ser tratadas como fatalidades isoladas, e sim como alertas éticos de um sistema que insiste em desrespeitar tanto a vida animal quanto a humana. São lembranças dolorosas de que, quando a natureza é forçada a se dobrar aos limites do entretenimento humano, é sempre o mais frágil que paga o preço. Se realmente desejamos ser um país comprometido com a ecologia, a preservação e o respeito à vida, precisamos ter coragem de repensar a existência de zoológicos tradicionais e todo tipo de espetáculo que submeta animais selvagens ao confinamento. Repensar não é destruir a educação ambiental; é reconstruí-la com verdade, dignidade e coerência. Talvez só assim a natureza — e nós mesmos — possamos finalmente viver em paz




