
A automedicação no Brasil é um fenômeno tão disseminado que já se confunde com o cotidiano da população, tornando-se um grave problema de saúde pública em meio a um mercado farmacêutico extremamente pujante e a uma verdadeira explosão de farmácias pelo país. Pesquisas recentes indicam que cerca de nove em cada dez brasileiros tomam medicamentos por conta própria, sem orientação adequada de um profissional de saúde, seja repetindo prescrições antigas, seguindo indicação de familiares e amigos ou simplesmente comprando aquilo que a propaganda exalta ou o balconista sugere. Esse hábito, muitas vezes naturalizado, está ligado a uma cultura que valoriza a solução rápida da dor e do mal-estar, mas ignora os riscos silenciosos que acompanham cada comprimido ingerido sem critério.
O uso indiscriminado de analgésicos, anti-inflamatórios, antibióticos, ansiolíticos e uma série de outros fármacos pode mascarar doenças graves, retardar diagnósticos, provocar dependência, gerar reações adversas severas e agravar quadros clínicos já existentes. Estimativas apontam que cerca de 29% das intoxicações no país estão relacionadas a medicamentos e que aproximadamente 18% dos óbitos por intoxicação têm ligação com o uso inadequado de remédios, dados que evidenciam a dimensão trágica desse comportamento. Em muitos casos, sintomas aparentemente simples, como dor de cabeça recorrente, febre persistente ou azia frequente, são tratados indefinidamente com comprimidos de venda livre, quando poderiam ser sinais de doenças neurológicas, infecciosas ou gastrointestinais mais graves.
O contexto em que esse problema se consolida é um ambiente de forte expansão e alta lucratividade do setor farmacêutico. O mercado de medicamentos no Brasil movimentou cerca de R$ 160,7 bilhões em 2024, segundo o Anuário Estatístico do Mercado Farmacêutico da Anvisa, o que representa um crescimento nominal de quase 13% em relação a 2023 e mais de 6 bilhões de embalagens comercializadas em apenas um ano. No varejo, as redes de farmácias e drogarias também apresentam resultados impressionantes: só em 2024, as vendas no varejo farmacêutico atingiram aproximadamente R$ 158,4 bilhões, com crescimento de 11% frente ao ano anterior, consolidando o segmento como um dos mais dinâmicos da economia brasileira.
Essa pujança financeira está diretamente ligada à proliferação de estabelecimentos: em poucos anos, o Brasil saltou de algo em torno de 90 mil farmácias para mais de 120 mil unidades em funcionamento, espalhadas por grandes capitais, pequenas cidades e bairros periféricos. A sensação de “ter uma farmácia em cada esquina” não é exagero, mas reflexo de um modelo de negócio que estimula o consumo contínuo de medicamentos, muitas vezes tratados como mercadorias comuns, ao lado de cosméticos e produtos de conveniência. Promoções agressivas, programas de fidelidade, descontos progressivos e campanhas publicitárias permanentes ajudam a reforçar a ideia de que sempre há um remédio adequado para qualquer desconforto, o que favorece a manutenção da automedicação como prática de massa.
Em vez de assumir exclusivamente o papel de estabelecimentos de saúde, com farmacêuticos atuando de forma ativa na orientação e na educação da população, muitas farmácias se veem pressionadas por metas de vendas e negociações comerciais, negociando produtos como quem vende qualquer outro bem de consumo. Essa lógica comercial encontra terreno fértil em um país com dificuldade crônica de acesso a consultas médicas e a serviços especializados, longas filas no SUS e planos de saúde caros para grande parte da população. Diante da dor, da febre ou da insônia, a farmácia aberta 24 horas ao lado de casa passa a ser percebida como uma “porta de entrada” rápida e sem burocracia, especialmente quando se trata de sintomas comuns ou aparentemente simples.
O problema é que esse atalho tem preço alto. Além das intoxicações e mortes associadas ao uso indevido de medicamentos, crescem problemas como resistência bacteriana pelo uso inadequado de antibióticos, agravamento de doenças cardiovasculares pelo consumo abusivo de anti-inflamatórios, descompensação de quadros psiquiátricos pela combinação imprudente de psicotrópicos e álcool, entre tantos outros exemplos. A automedicação, portanto, não é apenas uma decisão individual: ela está imersa em um contexto de forte incentivo econômico ao consumo, de oferta abundante e acessível de fármacos e de fragilidades estruturais na atenção à saúde.
Enfrentar esse quadro exige políticas públicas consistentes de uso racional de medicamentos, fiscalização rigorosa sobre venda e publicidade, valorização do farmacêutico como profissional de saúde e não apenas como figura obrigatória por lei, além de investimentos efetivos na atenção básica, de forma que a população tenha onde e com quem tirar dúvidas antes de recorrer ao “remédio de sempre”. Enquanto o país continuar a naturalizar a ideia de que cada mal-estar merece um comprimido comprado no balcão, a automedicação seguirá alimentando um ciclo em que o sofrimento humano se transforma em oportunidade de mercado e em que o faturamento bilionário da indústria e do varejo farmacêutico cresce na mesma proporção em que aumentam os riscos silenciosos à saúde coletiva.
Jairo Lima é artista plástico, escritor e poeta




