
A gestão pública no âmbito da educação municipal tem, diante do Transtorno do Espectro Autista (TEA), a chance de transformar escolas em espaços que acolhem, ensinam e protegem, com base em direitos já assegurados no ordenamento jurídico brasileiro. A Lei nº 12.764/2012 instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com TEA e consolidou o entendimento de que o autismo é deficiência, com todos os efeitos legais; a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015) detalhou deveres do poder público e assegurou educação inclusiva, acessibilidade, atendimento educacional especializado (AEE) e apoios para participação plena; e a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (MEC, 2008), combinada à Resolução CNE/CEB nº 4/2009, orienta a oferta do AEE de forma articulada à sala comum. Esse arcabouço normativo é o ponto de partida de qualquer plano municipal sério para alunos autistas e suas famílias.
O tamanho do desafio é grande e conhecido. O IBGE apontou no Censo 2022 2,4 milhões de pessoas com diagnóstico de autismo no país (1,2% da população de 2 anos ou mais) e, entre estudantes de 6 anos ou mais, cerca de 760,8 mil autistas — número que ajuda a dimensionar a presença do TEA no cotidiano das redes de ensino. Já os dados do Censo Escolar mostram aceleração das matrículas: de 636.202 estudantes com TEA em 2023 para 918.877 em 2024, um salto de 44,4% em um ano, o que pressiona planejamento, formação e infraestrutura das redes municipais. Esses indicadores devem ancorar metas, orçamento e monitoramento nas secretarias.
Acolher “de verdade” os alunos com TEA — e, junto com eles, seus pais e, muito especialmente, suas mães, que costumam assumir a linha de frente do cuidado — exige desenhar a política educacional em rede com saúde e assistência social, com fluxos claros de referência e contrarreferência e com pontos de apoio às famílias. Um instrumento simples e útil é a Carteira de Identificação da Pessoa com TEA (CIPTEA), criada pela Lei nº 13.977/2020, que facilita a prioridade de atendimento e a organização dos serviços; sua emissão vem sendo operacionalizada por estados e municípios, oferecendo inclusive vias digitais. Quando a gestão municipal integra a CIPTEA aos cadastros educacionais, melhora o planejamento de transporte, alimentação, AEE, apoio escolar e o diálogo com as famílias.
No cotidiano da escola, os ajustes começam por formação docente continuada e apoio pedagógico especializado, mas não param aí. O AEE deve dialogar com o currículo e com a prática da sala comum, garantindo recursos pedagógicos, tecnologia assistiva, comunicação alternativa e estratégias de autorregulação sensorial. O Plano Educacional Individualizado (PEI) — agora reforçado pelo Parecer CNE nº 50 (homologado em 2024) — deve ser construído com participação da família, metas claras e revisão periódica, evitando amarras burocráticas e partindo das barreiras reais à aprendizagem e participação do estudante. Esses marcos também respaldam a oferta de profissional de apoio escolar quando necessário, a flexibilização de avaliações, a organização de ambientes sensoriais amigáveis e protocolos de prevenção e manejo de crises, sem segregar o estudante da convivência com os pares.
Acolher a família é parte do sucesso educacional. Salas de escuta, encontros regulares com pais e mães atípicas, mediação escola–família por equipe multiprofissional e horários acessíveis de atendimento reduzem evasão e conflitos. O Parecer 50 reforça esse papel, reconhecendo a família como coautora do PEI. Experiências que conectam a agenda escolar a serviços de saúde (para evitar choques de horários com terapias), assistência (benefícios e proteção social) e trabalho (orientação de direitos) ajudam a diminuir a sobrecarga das mães e a fortalecer a permanência do estudante.
Há bons casos nacionais que inspiram. No Rio Grande do Sul, o programa estadual TEAcolhe, estruturado de forma intersetorial, montou uma rede com centros regionais e macrorregionais, qualificando milhares de profissionais e realizando mais de 11 mil atendimentos em três anos, com acolhimento a famílias e ações de educação permanente — um exemplo de como o arranjo entre saúde, educação e assistência amplia o impacto no território e oferece referências para pactos regionais entre municípios.
No campo estritamente municipal, Curitiba implantou o CEETEA — um Centro de Ensino Estruturado para estudantes com TEA, vinculado ao seu Centro Municipal de Atendimento Educacional Especializado. A iniciativa mantém o foco na inclusão na sala comum, articulando o AEE e oferecendo suporte técnico-pedagógico especializado à rede, o que favorece o atendimento sem ruptura do vínculo escolar. Em Fortaleza, a política de educação inclusiva combina garantia de matrícula na classe comum, AEE e parcerias com instituições como o Iprede para formação docente e instalação de painéis sensoriais, somando intervenções pedagógicas, culturais e esportivas — um desenho que alia gestão de rede e acolhimento às famílias.
Para que essas ideias virem política pública perene, a gestão municipal precisa transformar princípios em rotinas: diagnóstico da demanda com base nos dados do Censo Escolar e cadastros locais; orçamento específico e transparente; formação continuada com tutoria em serviço; PEI com metas mensuráveis e revisão semestral; protocolos para solicitação e oferta do AEE e do apoio escolar; ambientes com ajustes sensoriais e comunicação acessível; transporte e alimentação escolar adequados; calendário que considere itinerários terapêuticos; e uma governança intersetorial que envolva conselhos de educação, de direitos da pessoa com deficiência e de assistência social. A avaliação deve ir além da matrícula: medir presença, participação, aprendizagem e satisfação das famílias, com canais ativos de escuta para pais e mães, e correção de rumo quando necessário. Esses elementos — ancorados em leis e diretrizes já vigentes e inspirados em experiências exitosas — mostram que inclusão não é um favor, é gestão pública competente, baseada em evidências e compromisso com o direito de aprender.
Jairo Lima é membro da Academia Cabense de Letras, artista plástico e pós-graduado em gestão pública