
Durante séculos, a administração das cidades esteve pautada por interesses pragmáticos: defesa, arrecadação, infraestrutura básica. A ideia de gerir o espaço público sempre foi associada ao controle, ao poder, à técnica. Contudo, algo silencioso vem mudando. Um novo senso de propósito começa a emergir nas entranhas da vida pública — como se a própria cidade estivesse pedindo mais do que eficiência: pedindo sentido.
É curioso perceber que, ao longo da história, o gestor foi muitas vezes confundido com o governante absoluto, o técnico infalível ou o burocrata invisível. Mas, hoje, esse papel ganha uma nova camada. Tornou-se evidente que gerir uma cidade é também cuidar da alma coletiva que ali vive. Isso não se trata de religiosidade institucional, mas de espiritualidade no sentido mais profundo: a consciência de que o outro importa, de que o bem-estar do coletivo é uma tarefa moral, e não apenas funcional.
O ser humano tem evoluído. Lentamente, é verdade, mas de forma constante. As cidades, reflexos diretos dessa humanidade em movimento, também passam por transformações — visíveis nas pautas sociais, nos modelos de gestão participativa, na busca por mais inclusão, por mais escuta. Estamos vivendo um tempo em que antigas estruturas vão se desfazendo para dar lugar a uma nova visão de mundo. Uma visão em que o progresso não é apenas material, mas também ético.
Nessa travessia, há uma sutil mudança de mentalidade: cada vez mais, valores como compaixão, transparência, empatia e solidariedade deixam de ser utopias para se tornarem fundamentos práticos da boa administração. Essa mudança não se impõe por decreto; ela germina nos corações, amadurece nos debates, ressoa nos movimentos sociais e, pouco a pouco, começa a ocupar lugar também nos gabinetes públicos.
Espiritualizar a gestão pública não é transformá-la em algo dogmático ou místico. É humanizá-la. É compreender que cada ação do poder público tem repercussão direta sobre vidas em formação, sobre destinos que se cruzam nas filas dos hospitais, nas salas de aula, nos ônibus lotados, nas praças malcuidadas. E é também entender que o erário não é apenas verba — é energia coletiva. Usá-lo com consciência, zelo e moralidade é um gesto que transcende a técnica e alcança o campo da ética mais profunda.
A ALMA DA CIDADE
Vivemos, possivelmente, uma era de transição. Ainda não muito clara para todos, mas perceptível aos que param para observar os sinais: o cansaço diante da corrupção, a repulsa à desigualdade, a sede por novas formas de convivência. Há um movimento sutil de regeneração em curso. E esse movimento não se limita a leis ou reformas — ele passa por um novo olhar sobre o que é servir. Servir ao público, ao bem comum, ao futuro.
O servidor público, nesse novo tempo, é chamado a ser mais do que executor de tarefas. Ele é um mediador entre a estrutura do Estado e a vida concreta das pessoas. Sua função, por mais simples que pareça, é sagrada. É um elo na corrente que liga a sociedade a si mesma. E é nessa consciência que nasce uma nova cultura institucional, mais sensível, mais respeitosa, mais coerente.
A cidade do futuro não será feita apenas de inovações tecnológicas ou grandes obras. Ela será feita, sobretudo, de valores. Valores morais que orientam decisões. Valores que dão direção à política. Valores que devolvem à gestão pública seu verdadeiro significado: o de cuidar. Cuidar da vida em todas as suas formas, da convivência, do espaço coletivo, das próximas gerações.
E é por isso que falar de espiritualidade na gestão pública já não é estranho — é necessário. Porque no fundo, governar é, e sempre foi, um exercício de humanidade. E o futuro das cidades depende do quanto estamos dispostos a elevar essa humanidade ao centro da administração. Sem fazer alarde. Mas com coragem e propósito.
Jairo Lima é membro da Academia de Letras, artista plástico e pós-graduado em gestão pública