Mais famosa pelos rolos políticos e judiciais desde seu nascimento, a refinaria Abreu e Lima (ou RNest), em Ipojuca (PE), está prestes a completar dez anos cercada de pendengas e pendências ambientais.
Cercada literalmente. Moradores vizinhos ao empreendimento da Petrobras se queixam há anos de problemas causados por gases poluentes e questionam o modelo e os dados de monitoramento da qualidade do ar da região. Processam a estatal e cobram dela uma promessa que poderia atenuar seu suplício: unidades de abatimento de emissões chamadas SNOx, projetadas para operar junto com a refinaria, mas que até hoje não saíram do papel.
A primeira delas deveria ter sido inaugurada junto com o trem 1 da RNest, em operação desde dezembro de 2014. Não aconteceu, e desde então sua conclusão foi anunciada e frustrada algumas vezes. A Petrobras promete agora entregá-la no fim deste ano. O trem 2 está programado para 2028, e deverá ter a segunda SNOx.
O histórico recomenda desconfiar de planos e prazos. Anunciada em 2005, no primeiro governo Lula, a RNest seria uma parceria com a Venezuela, que terminou por não se concretizar. As obras atrasaram e foram paralisadas —sobretudo por problemas de corrupção trazidos à tona na Operação Lava Jato—, adiando em três anos a inauguração do trem 1, que ainda nem foi concluído.
As unidades SNOx também foram prejudicadas por problemas com a primeira construtora responsável por sua construção.
Em 2021, o Tribunal de Contas da União estimou que o custo do projeto da RNest subiu de US$ 2,4 bilhões, em sua concepção, para US$ 20,1 bilhões (R$ 13,4 bilhões para R$ 112,5 bilhões, pela cotação atual).
Em nota, a Petrobras afirma que a RNest “opera conforme a legislação vigente, e atende aos parâmetros de emissões atmosféricas determinados na licença de operação” e que a instalação da unidade SNOx “será responsável por melhorar ainda mais o desempenho ambiental da refinaria”. A estatal diz ter instalado quatro estações de monitoramento na região.
Tida como um diferencial ambiental, a tecnologia SNOx abate óxidos de enxofre e nitrogênio das emissões, tornando-as menos poluentes —e permitindo que o subproduto gerado no processo seja comercializado para outras indústrias.
A Agência Estadual de Meio Ambiente de Pernambuco (CPRH), que emitiu e renovou a licença de operação da RNest desde a inauguração, afirma que, sem a SNOx, o tipo de petróleo refinado em Ipojuca é mais leve, com menos enxofre.
A CPRH diz também que a série histórica de monitoramento da qualidade do ar na região mostra que os índices estão dentro dos parâmetros exigidos pela legislação —salvo alguns picos específicos, que geraram autos de infração à Petrobras.
Quando autorizou o funcionamento da refinaria em 2014, a CPRH limitou a sua produção a 45 mil barris/dia, condicionando a expansão desse número à instalação da SNOx. Hoje a RNest produz 100 mil barris/dia mesmo sem a unidade de abatimento de emissões. A CPRH alega que no início fez uma estimativa e, a partir de monitoramentos indicando boa qualidade do ar, pôde ampliar o limite.
Por causa das unidades SNOx, inéditas no Brasil, e por seu projeto para produzir diesel com baixo teor de enxofre, além de combustíveis renováveis e de origem vegetal, a RNest costuma receber da Petrobras rótulos pomposos como refinaria “do futuro”, “sustentável” ou “mais moderna” do país.
São definições estranhas ao que se vê na região onde a RNest está instalada. Em bairros pobres e em um conjunto de condomínios de classe média a cerca de 4 km da refinaria visitados pela reportagem, moradores reclamam do odor das emissões e as associam a sintomas frequentes como náuseas, vômitos, dores de cabeça e aumento de problemas respiratórios.
“É um cheiro insuportável. Já acordei de madrugada sufocada e tive de ir dormir na casa de minha mãe no Cabo [de Santo Agostinho, município vizinho]. Comprei esse apartamento planejando trazê-la para morar comigo, mas não tenho coragem, ela é idosa e hipertensa”, disse a psicóloga e servidora municipal Marcicleide da Cunha Lima, 46.
Ela vive há quatro anos num conjunto de cinco condomínios –com 288 apartamentos de 52m² cada, reunindo cerca de 5.700 moradores– no bairro de Vila Califórnia, de onde se avista a estrutura da refinaria.
Síndico de outro condomínio do complexo, o servidor público federal Eduardo Chaves Santos conta que sua esposa desenvolveu tireoidite crônica e sofreu um aborto depois da mudança para o local –o casal desconfia que ambos os fatos podem ter relação com a poluição.
A médica Maria Angela Zaccarelli Marino, doutora em endocrinologia pela USP, pesquisa há 35 anos a relação entre poluição industrial e doenças autoimunes, sobretudo tireoidite crônica, em moradores vizinhos ao Polo Petroquímico de Capuava, na Grande SP, onde está a refinaria homônima (Recap). Seus trabalhos demonstraram uma incidência maior de enfermidades em quem vive mais perto do complexo.
“Parece meio óbvio que a distância é um fator importante, mas comprovamos isso com pesquisa científica. Quanto mais próximo da refinaria, maior a chance de desenvolver tireoidite e outras doenças autoimunes”, afirma.
A médica frisa não conhecer a RNest, mas diz que quem está a uma distância de 4 km (e de pelo menos até 6,5 km) fatalmente sofre com efeitos de emissões. Ademais, a refinaria de Ipojuca emite vários dos mesmos gases que a de Capuava, como dióxido de enxofre, monóxido de carbono, dióxido de nitrogênio, entre outros –além de material particulado.
A irmã de uma moradora de um dos condomínios morta após um mal súbito em 2019 registrou um boletim de ocorrência em que disse que ela “inalou gás de vazamento da refinaria (…), vinha se queixando do odor muito forte que vinha de uma tubulação de lá, e que na madrugada acordou com falta de ar, o Samu foi acionado mas ao chegar ao local a mesma já se encontrava em sua cama em estado de óbito”.
O viúvo dela, o autônomo Jorge Simões, 58, lamenta, resignado: “Não sou médico, não tenho como dizer, mas sei que ela sofria quando os gases vinham, uma hora depois tinha reações. Aqui nós não temos como nos defender: se abrir a janela ventila mais, mas entra mais gás; se fechar, ficamos sufocados”.
Numa comunidade pobre a 1,5 km dali, o eletricista Marcelo Severino da Silva, o Gaivota, 45, relata que o caçula dos seus três filhos, hoje com 5 anos, teve problemas respiratórios agravados desde a chegada ao lugar, tendo sido até internado na UTI e intubado em 2021. Exibe, ao lado do garoto e da esposa, Laudijane do Nascimento, os prontuários.
Na zona rural também há revolta. “Meus pés de caju não botaram mais. Eu tirava cestos e cestos para vender na feira, agora floresce e não dá nada”, reclama a agricultora Elizabete Maria da Silva, 60, atribuindo a mudança à poluição da refinaria. Ela e o marido, João Sebastião de Oliveira, 68, vivem num sítio na área do extinto engenho Penderama.
Numa ação civil pública e num inquérito civil instaurados em 2021 pelo Ministério Público de Pernambuco (MP-PE), a Prefeitura de Ipojuca admite “danos ambientais ocasionados em decorrência da poluição atmosférica causada pela emissão dos gases” da refinaria.
Os documentos trazem um laudo e um relatório de médicos do município “comprovando que são reais os sintomas que acometem as pessoas, os quais podem estar sim associados aos gases/odores aos quais estão expostos”. Noutro trecho, um médico é mais assertivo: “A exposição contínua e prolongada a esses gases está interferindo na saúde desses pacientes.”
Ainda assim, nenhuma medida concreta foi tomada. O MP-PE informa que “requereu a realização de perícia médica” e “auditoria externa das instalações físicas e dos dados de emissão atmosférica da refinaria”.
Cansados de esperar, moradores entraram com ações contra a Petrobras cobrando indenização por danos morais. Perderam em primeira instância: o juiz alegou que eles não comprovaram danos à saúde pela poluição. Estão recorrendo.
No processo, incluíram o registro de um vídeo gravado numa estação de monitoramento da Vila Califórnia registrando que, em 5/5/2021, o nível de monóxido de carbono chegou a 3.120 ppm (partes por milhão), quando o máximo tolerado pela norma ambiental é de 9 ppm. Mas na planilha enviada pela Petrobras à CPRH (a agência ambiental do Estado de Pernambuco), o monitoramento do gás naquele dia aparece como “inválido”. Questionadas pela reportagem, Petrobras e CPRH não explicaram o que houve.
Na refinaria Abreu e Lima (e em vários outros locais pelo país), a tarefa de monitorar a qualidade do ar cabe à própria Petrobras, que subcontrata uma empresa e envia os dados à CPRH.
Segundo o engenheiro químico David Tsai, gerente de projetos do Iema (Instituto de Energia e Meio Ambiente), há no país três modelos de monitoramento da qualidade do ar: 1) em que o estado é diretamente responsável por tudo (caso da Cetesb em SP); 2) o órgão estadual subcontrata uma empresa para monitorar; 3) o próprio poluidor contrata uma terceirizada e repassa os dados para o estado (caso da refinaria Abreu e Lima).
“Esse terceiro é o pior dos modelos, porque o órgão público fica totalmente refém”, diz Tsai. Ele observa que os parâmetros brasileiros de qualidade do ar, atualizados recentemente pelo Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), já são bem menos rígidos do que os recomendados em 2021 pela Organização Mundial de Saúde e que os prazos colocados para melhorá-los são muito longos —até 2044.
O advogado Rômulo Saraiva, que defende os moradores, diz que “o automonitoramento feito pela Petrobras não é desejável”. “Diante de tantos casos de corrupção e de suspeita de manipulação de dados, o Estado deveria assumir este encargo”, afirma.
Saraiva –que é colunista da Folha– reclama que os dados com indicadores de poluentes tornados públicos (hoje enviados pela CPRH ao portal MonitorAr, do governo federal) não mostram os principais gases nocivos, mas uma pequena amostragem. Só há no painel público três gases, além de material particulado. O advogado diz que ao todo a Petrobras monitora 17 gases –e que muitas substâncias nocivas, como benzeno, nem são monitoradas.
“Se a Petrobras foi multada por poluir a comunidade vizinha a Pasadena, onde há maior rigor e as multas são elevadas, o que dizer da Refinaria de Ipojuca?”, afirma, em referência à multa de US$ 3,5 milhões paga pela petrolífera em 2018 nos EUA (R$ 13 milhões à época).
A maior multa conhecida aplicada pela CPRH à Petrobras por poluição atmosférica da RNest foi de R$ 50 mil, considerada irrisória pelo advogado. Em 2017, por exemplo, a Cetesb multou duas refinarias paulistas (Replan, em Paulínia, e Revap, em São José dos Campos) por poluição atmosférica em R$ 1 milhão cada.
Para a engenheira química Glenda Rodrigues, que trabalhou por 34 anos na Petrobras e hoje é consultora na área, o modelo de monitoramento de qualidade do ar adotado pela RNest é muito comum no Brasil, dada a falta de recursos dos estados.
Ela afirma não ver problemas com a subcontratação de empresas de monitoramento e duvida que possa haver manipulação de informações. “É crime você manipular um dado desse, eu não acredito nisso.”
Mais conhecida por abrigar a praia de Porto de Galinhas, Ipojuca tem o maior PIB per capita de Pernambuco (R$ 150,6 mil, em 2021), em grande parte graças aos impostos pagos pela Petrobras, mas segue com muita pobreza e desenvolvimento social medíocre, conforme índices mais atualizados.
“A gente sente uma complacência do poder público e dos órgãos de controle, porque a refinaria gera imposto, dinheiro. Parar um gigante desses traria muito prejuízo ao município e ao estado”, interpreta o síndico Eduardo Santos. A psicóloga Marcicleide Lima arremata: “Estamos brigando contra Golias”.
Da redação do Radar Metropolitano com informações da Folha de São Paulo